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Lembranças da roça suscitadas pelo tempo presente

roça

Maria Aparecida de Moraes Silva

Hoje, ao acordar, veio-me à memória, a imagem de Mané Ciço (Francisco), homem preto, filho de criação de meus avós paternos, lá naquela roça, pelos idos dos anos de 1940. Tinha um  semblante sereno e um dom especial para tocar sanfona (acordeom). Recebera uma pequena gleba de terra de meus avós,  para plantar suas roças de subsistência. Na verdade, era uma terra  de brejo e capoeira. Dotado de uma força enorme, roçou o mato,  derrubou as árvores grandes, sangrou a terra molhada para, assim,  realizar o plantio. Lá vivia feliz com a companheira e sua sanfona.  Costumava ir até ao nosso sítio nas noites enluaradas para tocar  para nós, crianças. Graças a ele, ouvi, pela primeira vez, um som  musical. Depois de nos encantar com sua melodia, dizia-nos boa  noite, e ia embora, deixando para trás um rastro de luz e felicidade  em nossos corações de crianças. Um tempo depois, Mané Ciço não  mais voltou. Disseram-nos que havia morrido em razão de ter se  esforçado muito para lavrar a terra doada. Lembro-me de minha  tristeza, um sentimento de falta, tanto dele, quanto de sua música e  das noites enluaradas. Quando escrevi meu primeiro livro, Errantes  do fim do século, referi-me a ele, como meu sertanejo sem sertão.  Outra lembrança advém das estórias contadas por meu pai, logo  após o jantar. Em volta dele, no terreiro da porta da frente da casa,  bem na direção do cruzeiro de madeira, ali fincado para proteger a  casa e seus moradores, sentávamo-nos e ouvíamos contos que  nunca terminavam.

Depois de muito tempo, quando li O narrador de  Walter Benjamin, compreendi que meu pai era um narrador. As  estórias contadas diziam respeito às aventuras de Pedro  Malasartes, Saci Pererê, dos crimes cometidos naquelas bandas  por Dioguinho, matador profissional que colecionava orelhas de  gente e era temido por todo mundo. Ademais, estórias de  assombração, de cavalos em disparada no meio da noite, nas  matas, sem cavaleiros … Uma das estórias dizia assim:  Numa noite, muito escura, um tropeiro cansado, após apaziguar a  boiada, apeou do cavalo, e fixou a rede no alto de uma figueira, a  fim de dormir para, no dia seguinte, continuar a marcha. Foi então  que percebeu que ali, ao seu lado, havia outra rede amarrada à  copa de figueira. O tropeiro logo entabulou uma prosa com seu  vizinho, que se prolongou pela madrugada adentro. Assim que  amanheceu, ele, perplexo, percebeu que não havia ninguém na  rede … Segundo o desfecho da estória contada, o tropeiro havia  proseado com uma assombração!  Bem mais tarde, fui compreender a importância da oralidade para  cimentar a solidariedade dos grupos sociais e também para  despertar o imaginário. Compreendi também a fecundidade dos  contos, das narrativas que são imbricados na cultura material e  imaterial de pessoas simples, de caipiras que, embora ágrafos,  eram dotados de um profundo saber sobre os mundos visível e  invisível que os rodeava. Compreendi também que as narrativas se  enquadravam no gênero satírico/picaresco. Estórias, histórias,  fincadas no corpo e na alma, cujas lembranças ainda me trazem  muita comoção.

Escrevi estas linhas ao matutar sobre o texto escrito por Jaime Pinsky acerca do aborto. Talvez a inspiração tenha sido produzida  como uma espécie de rota de fuga do tempo presente. O autor,  gentilmente, permitiu-nos a publicação em nosso site.

O direito ao aborto

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TRAMA

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O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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