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Matutando…

Malassombro e desenraizamento

Maria Aparecida de Moraes Silva

A imagem que nos serve de inspiração é obra do ceramista Ulisses Mendes, cronista e morador de uma cidadezinha do Vale do Jequitinhonha/MG, Itinga, cujo IDH é um dos mais baixos do país (0,452). Itinga foi escolhida em 2002, pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para ser o marco do Programa Fome Zero. A imagem é o retrato das mulheres do Vale do Jequitinhonha cujos maridos migram para outras terras em busca de trabalho, mormente, o do corte da cana em São Paulo. São erroneamente chamadas de “viúvas de maridos vivos”. Denominação estereotipada que camufla a labuta diária pela sobrevivência, além da negação de suas identidades, definidas a partir de suas condições enquanto “viúvas”, sem os respectivos maridos, portanto, incapazes de serem elas mesmas, camponesas do Vale. Uma possível leitura da imagem nos remete à solidão, ao desconsolo, mas também à capacidade reflexiva, ao ato de matutar. Matutar sobre a vida no dia a dia, com desesperanças e esperanças.

Imagem inspiradora que nos remete aos mundos sociais que elegemos como objetos de nossos estudos. Imagem que nos incita aos estudos de gênero, memória, migração, terra, trabalho, ruralidades, localidades, subjetividades, identidades, sentimentos, enfim, temas compósitos de teorias sociológicas que buscam não somente a interpretação da realidade social como também a construção de uma possível práxis transformadora.

Seguindo as pegadas do artista do Vale, Ulisses, sua obra é o reflexo da experiência vivida. Portanto, ela é única. Segundo Walter Benjamin, a obra do artesão é produzida com a alma, as mãos e os olhos. Portanto, arte e vida estão amarradas uma à outra. Ao mesmo tempo em que a argila/matéria- prima, colhida após rigorosa escolha nas margens do rio Jequitinhonha, vai sendo talhada com as mãos, os demais sentidos e sentimentos vão imprimindo a imagem/reflexo de um mundo social marcado por visibilidades e invisibilidades.

Os ensinamentos do sociólogo americano, Wright Mills, segundo os quais, a sociologia define-se pelo método do artesanato científico, representam uma espécie de fio de Ariadne para nossas reflexões. A construção do objeto, a escolha da metodologia, a organização do material coletado, a interpretação, o rigor teórico, são ensinamentos/guias para o entendimento da realidade estudada e para a construção da postura científica e ética do (da) pesquisador (a), enquanto artesão (ã). Do mesmo que o artesão produz sua obra a partir das condições objetivas e subjetivas existentes, nossos trabalhos são o resultado dos achados das pesquisas e das chaves interpretativas utilizadas como instrumentos analíticos e também das marcas subjetivas que nos diferem e nos aproximam.

Vale a pena ainda acrescentar que o artesanato não se faz sem referência ao tempo passado, entendido em sua relação com as temporalidades do presente e do futuro. Ou seja, a compreensão da história não é de forma linear, mas por meio da dialética (conflitiva) das dimensões das três temporalidades. Desta feita, o passado – enquanto memória e história -, é sempre revisto, recontado, questionado. A tessitura dos fios implica conhecimento da urdidura tanto do momento presente como do passado. Este ato corresponde, muitas vezes, à necessidade da procura de outras fontes, de outros veios, a fim de produzir uma urdidura que seja capaz de sustentar os fios TRAMADOS.

Estas reflexões constituem a urdidura do Grupo TRAMA. Espaço TRAMADO de muitos fios, por diferentes olhos, mãos e almas, seguindo os modelos de tessitura do artesanato científico.

Ao assim matutarmos, objetivamos consolidar os conhecimentos produzidos, e também contribuir para a transformação do mundo social em que vivemos, almejando a justiça social. Uma práxis possível.

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TRAMA

TRAMA

O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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