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O direito ao aborto

o direito ao aborto

Por Jaime Pinsky, historiador e editor, professor titular da Unicamp, livre docente  da USP, autor de História da Cidadania, entre outros livros.

O fogo. A roda. A agricultura. As cidades. As manifestações artísticas. A criação  dos deuses. O monoteísmo ético. A filosofia. A capacidade de resolver conflitos  sem recorrer à violência. A atenção às crianças e aos idosos. O respeito às  mulheres. Todos eles foram conquistas da civilização.  O processo que ocorre com a humanidade pode também se dar com os indivíduos.  Ninguém nasce sabendo produzir ou usar o fogo (lidar com ele, evitar  queimaduras, é um item obrigatório no elenco das preocupações dos pais),  plantar, ou produzir arte. Usufruir do patrimônio cultural da humanidade é um  direito e um privilégio. Também a convivência é um aprendizado social: a  percepção do outro é sinal de inteligência social. Formas de culto, organização de  categorias de pensamento, conhecimento tecnológico, tudo é fruto de  aprendizagem. Como fruto de aprendizagem é tanto a polidez, quanto a  capacidade de apreciar música ou artes plásticas. Disse e repito que a grande  diferença entre o ser humano e outros animais é nossa capacidade de produzir,  armazenar e consumir bens culturais, materiais e imateriais.

Outra capacidade que  temos é a de sermos, fundamentalmente, racionais. Isso implica em ter opinião  sobre as coisas, mas implica também em sermos capazes de alterar nosso olhar  sobre as coisas e as pessoas. Por exemplo, as mulheres.  Confesso que, ao contrário da minha casa, na escola e na rua de minha cidade no  interior paulista o ambiente era machista e homofóbico. A superioridade do macho  e a ideia de que mulheres eram bens de uso (com exceção da mãe de cada um de  nós, que era uma santa…) permeava nossa relação com as meninas do bairro, as  colegas da escola e até com algumas professoras mais liberais. Graças à minhas  escolhas profissionais e pessoais, e à convivência com homens mais evoluídos,  com mulheres maravilhosas e com leituras adequadas, fui me encaminhando para  posições bem diferentes daquelas que tinha quando garoto. Isto aconteceu com  muita gente. Isto aconteceu com muitos povos e culturas. No mundo civilizado não  se atira mulheres nos rios da Babilônia para saber se elas são virgens, não se  apedreja mais mulheres por terem “prevaricado”, não se queima mais mulheres na  Inquisição por conhecerem segredos de ervas que curam. A dupla moral sexual  (“minha mulher tem que ser recatada, eu posso ir a orgias sexuais em Brasília”) é  coisa de imbecis retrógrados.  O mundo de hoje não valoriza mais o chamado macho alfa, capaz de matar um  leão só com as mãos: um “nerd” competente é mais útil como parceiro de uma  mulher do que um troglodita agressivo e violento (além de ser muito mais  agradável).

Mais do que proteção física as mulheres buscam companheirismo,  compreensão, cumplicidade. E muitos homens, inclusive quando representam o  povo nas casas legislativas, não sabem disso. Ou esquecem. Ou fingem esquecer,  preocupados que estão com a “vida humana”. Não querem é perder o controle,  perder o poder. Se preocupados estivessem com a vida humana não extrairiam de  forma desonesta parte das riquezas produzidas no país para seu usufruto pessoal,  com prejuízo da saúde pública, da educação, da criação de empregos e,  indiretamente, até da segurança dos cidadãos. A destruição quase completa da  maior empresa brasileira (Petrobras) é só a ponta do iceberg, que abaixo da linha  d’água mostra falcatruas com a conivência de políticos em quase todas as  concorrências públicas que, na realidade, não são concorrências, nem são  públicas.  E são esses seres “puros” e “imaculados”, detentores de procuração dos deuses e  dos santos, que querem legislar sobre o útero de cada mulher, como conceituou  com rara felicidade o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso? Com que  direito? Com que autoridade?  Países modernos e civilizados são laicos e democráticos. É inaceitável querer  transformar problemas de saúde pública em questões de fé. Embora diferentes (o  que é ótimo), mulheres não podem mais serem tratadas como inferiores. Da  mesma forma como os governos não têm o direito de legislar sobre o pênis dos  homens, eles não têm como e por que legislar sobre o útero das mulheres.  Acabou. Já era. Página virada. Não se pode caminhar para trás.

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TRAMA

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O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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