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Justiça por Moïse Mugenyi Kabagambe

Somando-se a outros grupos e organizações, o TRAMA manifesta seu repúdio ao assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, ocorrida em 24 de janeiro de 2022. Moïse era um refugiado congolês que foi espancado até a morte ao cobrar seu pagamento atrasado.

Reiteramos e assentimos com a nota de repúdio da ABA – Associação Brasileira de Antropologia:

Nota de Repúdio ao assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, ao racismo e à xenofobia, no Brasil

A Associação Brasileira de Antropologia, através de sua Comissão de Direitos Humanos e dos Comitês de Antropólogas/os Negras/os, de Estudos Africanos, de Cidadania, Violência e Gestão Estatal, e de Migrações e Deslocamentos, vem a público manifestar o seu repúdio ao assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, na noite do dia 24 de janeiro de 2022, no Rio de Janeiro.

Moïse era um refugiado congolês. Junto com seus coirmãos, chegou ao Brasil quando criança. Tinha 24 anos quando sua vida foi brutalmente interrompida. Naquele dia, de acordo com a família, foi até o local de trabalho para ter reconhecidos seus direitos como trabalhador, já que as diárias que devia receber como ajudante de cozinha estavam atrasadas. A resposta foi o espancamento até a morte por um grupo de, pelo menos, cinco pessoas, incluído o gerente do quiosque.

O crime repercutiu publicamente, de forma ampla, quatro dias depois, a partir da demanda por investigação e justiça dos familiares e da comunidade congolesa em um protesto frente ao quiosque no dia 29 de janeiro.[1]

O assassinato do Moïse evidencia o racismo estrutural prevalecente na sociedade brasileira desde a era escravocrata, o qual se manifesta cotidianamente, seja na ação seletiva de um Estado que protege algumas vidas em detrimento de outras, ou nas revoltas seletivas de nossa sociedade que pouco se indigna diante das mortes de pessoas negras. Em 2020, segundo dados do Atlas da Violência 2021, do total de mortes violentas intencionais, 76,2% atingem pessoas negras; proporção que cresce para 78,9 % quando se trata de mortes provocadas por intervenção policial[2]. Dessas mortes, dados do GENI/UFF demonstram que 99,2% são arquivadas pelo Ministério Público sem nenhuma investigação.

Imigrantes e refugiados, que não se enquadram no padrão estético-racial da branquitude, confrontam esse racismo estrutural e a violenta xenofobia em suas vidas cotidianas. Estão expostos à discriminação de diversos tipos, inclusive assassinatos, em especial os de origem africana e indígena. Essas violências tendem a ser, o mais das vezes, invisibilizadas na mídia e na sociedade e sua quantificação sequer é especificada em estatísticas oficiais.

Esse racismo, que é estrutural, intensifica as atitudes de ódio, discriminação e diversos tipos de fobia, provocando violações de direitos, inaceitáveis em um estado democrático de direito e em um país signatário das Convenções Internacionais de Direitos Humanos que visam proteger cidadãos nacionais e estrangeiros, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, ou qualquer outra condição.

Ignoram-se os mais de 50 mil homicídios, e as dezenas de milhares de desaparecimentos por ano, em um país escravagista que historicamente favoreceu a vinda de europeus como forma de branqueamento. O assassinato do Moïse não é um caso isolado. Pelo contrário, ele integra uma ordem estrutural e institucional que nega histórica e sistematicamente o direito à vida, ao reconhecimento social e moral; enfim, o direito a ter direitos das populações negras, indígenas e refugiadas, no Brasil.

A Associação Brasileira de Antropologia se une a todos os que protestam contra o crime cometido contra Moïse, e tantos outros imigrantes, como Kerby Tingue, de 32 anos, haitiano, assassinado em Florianópolis em 2019[3]; João Manuel, de 47 anos, angolano, morto em maio de 2020 em São Paulo[4], assim como de afro-brasileiros como  João Alberto Silveira Freitas, assassinado em 20 de novembro de 2020, em um estabelecimento comercial em Porto Alegre[5], e Pedro Gonzaga, de 19 anos, morto em um outro estabelecimento comercial na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, em 15 de fevereiro de 2019[6].

Uma sociedade estruturalmente racista é a responsável pela construção de um Estado que fecha os olhos para as mortes de pessoas negras, indígenas, quilombolas, ciganas e, neste caso específico, a morte de imigrantes e/ou refugiados negros! Esta seletividade se manifesta em nossas relações rotineiras e de modo naturalizado. Precisa ser efetivamente combatida.

A ABA se solidariza com os familiares, parentes, amigos e comunidades atingidas pela violência, o racismo e a xenofobia no país. Exigimos das autoridades competentes a mais célere apuração dos fatos e responsáveis, além da justa reparação aos familiares. Acrescentamos a isto a urgência para que se faça justiça.

[1]https://migramundo.com/morte-de-congoles-no-rio-de-janeiro-por-divida-de-trabalho-gera-comocao-revolta-e-mobilizacao-por-justica/

2 https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/anuario-2021-completo-v6-bx.pdf

3https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2019/06/27/corpo-de-haitiano-que-morreu-apos-ser-atropelado-na-br-101-sera-cremado-na-grande-florianopolis.ghtml

4https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/19/angolano-morre-esfaqueado-na-zona-leste-de-sp-e-2-ficam-feridos-imigrantes-deixam-suas-casas-em-itaquera-por-medo-de-xenofobia.ghtml

5http://www.portal.abant.org.br/2020/11/24/nota-da-aba-sobre-o-assassinato-de-joao-alberto-silveira-freitas/

6https://extra.globo.com/casos-de-policia/morte-de-jovem-por-seguranca-gera-protestos-acarnemaisbaratadomercado-23456250.html

Brasília, 03 de fevereiro de 2022.

Associação Brasileira de Antropologia (ABA); sua Comissão de Direitos Humanos; seus Comitês de Antropólogas/os Negras/os; de Estudos Africanos; de Cidadania, Violência e Gestão Estatal; e de Migrações e Deslocamentos

Divulgamos, também, o texto de Sérgio Ricciuto Conte, publicado em uma rede social:

– Quem te matou?
– Quem me matou foi o Brasil.
– Como assim?
– Somos migrantes, fugimos, mas na fuga tentamos buscar vida. No começo foi difícil, mas depois consegui um emprego, simples, mas parecia bom.
A morte me aguardava. No solo que eu achava amigo, a morte me aguardava. Fui espancado até à morte num quiosque, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Há muita violência. Muita agressividade contra migrantes, especialmente se somos negros, africanos então…
Meu cadáver foi agredido, roubaram meus órgãos no hospital.
– Como se explica esse ódio todo?
– Não fui morto por dois ou três.
Me matou foi o Brasil. Seu ar contaminado de ódio.
O horror que rasteja nas ruas, o racismo nas veias do sistema, a fúria da discórdia e das mentiras de um desgoverno que só aumenta a violência e a morte.
Quem me matou foi o Brasil.
Que cego não viu que eu só queria meu ganha-pão. Busquei realizar meu sonho, mas me jogaram numa guerra entre pobres.
Fui cobrar meus direitos, me espancaram até à morte. Morri porque fiz questão de sobreviver.
Quem me tirou a vida foi uma sociedade cínica voltada ao enriquecimento dos ricos, ao consumo desenfreado, ao lucro custe o que custar.
Quem me matou foi a exclusão social. Minha e dos meus assassinos.
Eu não queria muito…
…mas já que me mataram quero participar da salvação dos outros migrantes, negros, pobres. Que minha morte possa ser um grito de denúncia.
Fui embora do Congo, minha pátria. Fui obrigado pela violência a buscar outro lugar.
Minha esperança achou o Brasil.
Queria ganhar meu pão, para minha família viver em paz.
Morri, porque tentei sobreviver.
#justiçapormoise

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TRAMA

TRAMA

O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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