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“Malassombro” e desenraizamento

Malassombro e desenraizamento

Lúcio Verçoza

Que cheiro da terra molhada e eu sem poder plantar

Teotônio Vilela segue cercado de cana. Os trabalhadores também prosseguem, apesar do medo da doença, mesmo com medo das máquinas colheitadeiras, do desemprego e, alguns, com medo de assombração. Matutando um pouco sobre essas questões, talvez os “malassombros” não tenham nada de irreal, isso tanto por ele remeter a um momento real que precedia o desenraizamento (da infância camponesa sem energia elétrica e ouvindo os mais velhos contando “causos”), quanto pelo “malassombro” ter relação concreta com assombrações da condição desenraizada do presente.

São fagulhas de pensamentos embrionários que serão expostas brevemente, mas que têm relação com o fato de uma das principais marcas das histórias de “malassombro” ser o medo. E o medo, diante das incertezas (como: “o ‘malassombro’ é real ou não?”), é uma das principais marcas do atual trabalho no corte da cana. Obviamente, antes também existiam vários medos, mas, talvez, na condição de morador das fazendas não havia alguns medos importantes, como o medo de não conseguir pagar aluguel, gás, água e feira. Ou o de ficar inempregável por não atingir mais a meta diária de produção. O medo da máquina. Ou ainda, o de encarar um jovem de 14 anos que comercializa craque… Medo de humilhação e violência também eram presentes no passado, mas a impessoalidade da cidade (“da rua”) retira a necessidade de prestar satisfação, o agressor não presta satisfação a ninguém porque a própria vida na cidade já é humilhante e violenta – estamos pensando bem alto. Os “malassombros” vão ganhando contornos tão vigorosos, que fica difícil não tomar sustos. Com tantos medos, com tanto esforço, o olhar assustado pode caminhar para o olhar de desalento…

Todavia, contraditoriamente, a outra principal marca que aparece nas rodas sobre histórias de “malassombro” é a da coragem. É a coragem de olhar para o “malassombro”, de encarar o lobisomem e de sair vivo para contar a quem tem coragem de ouvir. Medo e coragem habitando as mesmas histórias. Assim como estranhamento e resistência habitam os mesmos eitos. Assim como muitos cortadores de cana caminham adiante, mesmo que seja mancando.

Pedimos desculpas se divagamos demais sobre esse tema, o fizemos porque talvez o medo possa ter relação com outros temas, como trabalho, saúde e “expropriação do afeto” (termo utilizado pela Profa. Maria Aparecida de Moraes Silva), pois não se trata apenas da expropriação da força de trabalho, ou do mais valor.

Existe o arruinamento de um modo de vida, o soterramento da relação com os lugares, pessoas e com a natureza. Um soterramento que não é completo, pois no fundo do quintal (quando a casa tem quintal) ainda resta um pé de macaxeira. Pois em volta duma lâmpada incandescente, que ilumina o escuro corredor de uma vila urbana, ainda existe um narrador: alguém que, quando era criança, viu seu pai – com um punhal – enfrentar o lobisomem e sobreviver para contar a história. A pergunta que fica é: quando a luz incandescente se apagar, quando o narrador morrer, quem contará essa história?

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TRAMA

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O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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