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Um conto muito pouco contado

um conto

Lúcio Verçoza

Nesse dia, Juarez levantou-se com ódio. – Eu vou acabar com todas as canas – repetiu Juarez a si próprio.

Mal havia dormido na noite anterior. O choro de sua criança buchuda foi como um martelo batendo imagens que, em vão, ele tentava afastar da sua cabeça.

Comeu o cuscuz seco e calado, enquanto repetia mentalmente a mesma frase em busca de fortalecer a sua decisão.
Chegou ao eito antes do sol que ameaçava raiar. Amolou o facão com tanta intensidade que fizera o objeto pressentir que iria sofrer naquele dia.

Antes do primeiro golpe, Juarez respirou fundo. Numa profundidade comparável ao saborear do último pedaço da carne de porco numa festa de casamento, pois é certa a incerteza de quando isso ocorrerá novamente.

O longo e lento respirar foi sucedido por um suspiro alto, que não se realizou por completo.Juarez o interrompeu bruscamente e se atirou veloz para pegar as inimigas desprevenidas.  -Vocês vão morrer desgraçadas!

Juarez não parou. À medida que o sol corria, ele corria mais. Não queria ficar para trás. Sabia que tinha que ser mais rápido que o sol. Se o sol tivesse chegado ao meio do caminho com ele ainda no início, era derrota na certa.

Por isso, Juarez corria. Estava determinado a acabar com todas as canas. Sua inabalável concentração não era questão de opção, a morte das canas para ele era a sua morte e vida em jogo. Por isso encontrava forças para matar. – Eu mato para viver.

O sol estava no meio. Juarez sabia que era o momento de trégua. Parou na mesma velocidade com que golpeava a cana. O seu parar era acelerado, não queria esfriar o corpo. O reaquecimento poderia ser demorado, acarretando em desvantagens na batalha.

Abriu rapidamente a vasilha de feijão que insistia em esconder os miúdos e raros pedaços de charque. Era dessa mistura inicialmente quente, posteriormente fria, e agora novamente quente pela ação do sol, que ele iria retirar mais forças para enfrentar o calor do eito. Ele comia com tanta pressa que parecia estar comendo comida roubada.

Não quis conversa. Foi terminando a comida e recomeçando a batalha. Estava ciente de que aquele que acabasse primeiro com a trégua teria vantagem.

Daí em diante derrubou as canas sem olhar para o sol. O sol corria contra ele, por isso evitou cair na tentação de olhá-lo e ser abatido pelo desânimo. Além do mais, levantar a cabeça para olhar o sol era perda de tempo, e isso era deixar de avançar no terreno do inimigo.

Batalhava sem trégua. A sua determinação em acabar com todas as canas, naquele momento, era maior do que tudo.

O sol foi fugindo, foi se escondendo cansado. Juarez não fugia. As canas também não.

Quando começou a penumbra, Juarez pensou: – Deve estar no fim. Se até o sol morre por que a cana não?

Ele continuou. Animado por esse pensamento encontrou forças para vencer os talhões de cana que apareciam por detrás dos que caíam. A cada cana derrubada, Juarez pensava ser a última. Porém, após cada golpe do facão surgiam mais canas, quanto mais canas eram derrubadas mais apareciam. A vista de Juarez, que outrora se perdera no verde da cana, se perdia agora no escuro total.

O silêncio do escuro foi quebrado com um grito de uma voz estranha: – Acuda o Juarez! Acuda!

Nessa hora, ele se deu conta da tremedeira de seu corpo. Tentou fazer com que seu copo parasse de tremer, mas não tinha controle. Seu corpo desobedecia a sua alma. Contorcendo-se todo e debatendo-se sobre a terra, o seu corpo gritava por autonomia, queria expulsar a alma.
No meio de toda aquela confusão, Juarez voltou seu pensamento para a cana. Pensou na impossibilidade de se levantar para voltar à batalha. Jogou a toalha, mas não se conformou completamente, queria saber os motivos de sua derrota.

– Minha desgraça é por causa da cana. Mas, quanto mais cana eu mato, mais desgraça aparece. Eu perdi que nem o Seu Zé da Tapioca, que querendo acabar com a desgraça da cachaça tentou beber toda a cachaça do mundo e acabou morrendo. Ora, por que nós dois perdemos em nossa luta?

O pensamento acabou sendo cortado por alguém que falava: -Temos que levar ele daqui. Nisso, ele se desconcentrou. Sentia que seu corpo tremia mais forte como se resistisse a ser carregado.

Voltou a se concentrar na derrota. – Por que eu e Seu Zé da Tapioca perdemos as nossas batalhas? A cana e a cachaça são mais fortes do que nós? Não! Será possível?

Seu corpo resistia, queria continuar debatendo-se na terra. As mãos tentavam carregá-lo. – Levem ele pra usina!

Ao ouvir isso, veio uma imagem de surpresa na cabeça de Juarez. Ele, que não era de sentir medo, sentiu até um calafrio na espinha diante de tal imagem. – Eu sou como a cana.    Ao tentar matar todas as canas, Juarez se matava, pois ele era como a cana. Ele morria aos poucos em cada golpe de facão.

A batalha estava errada. A cana não era sua inimiga, ela era como ele.

Juarez sentiu a dor de seu corpo se contorcendo com uma força inimaginável. Seus ossos estavam sendo dobrados.
De repente, ele viu um clarão.

– Eu estou na moenda.

– A partir de agora eu não serei mais eu. Eu vou virar pó. Vou virar açúcar e meu sangue álcool.

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TRAMA

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O Grupo TRAMA (Terra, Trabalho, Memória e Migração) dedica-se à pesquisa acadêmica e extensão. Está no PPGS da UFSCar, e é coordenado por Maria Ap De Moraes Silva.

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